"Liberdade não é a ausencia de compromissos, mas a capacidade de escolher sua tarefa"

terça-feira, 5 de abril de 2011

Carta a Noblat ... (Assunto: Jair Bolsonaro)

A propósito de seu post de hoje (O “fascismo do bem”), que contrasta a reação à piada de Lula com os homossexuais de Pelotas com a reação atual da esquerda a Jair Bolsonaro, algumas considerações:
1. A piada de Lula foi, sim, muito infeliz. De péssimo gosto. Inadmissível um presidente sequer proferindo a palavra “veado”, publicamente ou a portas fechadas. Mas, porém, contudo, todavia: no dia em que o Lula defender publicamente que os “veados” de Pelotas merecem tortura ou que os “veados” de Pelotas são inferiores ou que os “veados” de Pelotas não devem ter os mesmos direitos que o restante da população, aí sim as declarações dele e de Bolsonaro serão comparáveis.
2. O que Bolsonaro disse não foi apenas uma piada infeliz. Bolsonaro agride e desrespeita parcela significativa dos cidadãos brasileiros. Defende a tortura. Não há nada de “corajoso” em dizer coisas como essas — muito pelo contrário: é a mais pura covardia. Covardia de quem não admite a existência do diferente e, em vez de lidar com a pluralidade (tarefa essencial quando se vive numa democracia), quer impor sobre os outros os seus dogmas e preconceitos.
3. Sim, existe muito petista que fecha os olhos para as escorregadas que os membros de seu partido cometem. Assim como existem pessoas de direita que também torcem tudo e chamam urubu de meu louro para poder defender os politicos de seu gosto. Essa é uma atitude que não se restringe a este ou aquele espectro político. É humano defender a sua sardinha. Alguns defendem cegamente. Mas nem todos. C’est la vie. Você, como jornalista, deve (ou deveria) saber bem que não existe imparcialidade, nem por parte daquele que profere o discurso, nem por parte daquele que ouve.
4. Logo, nada mais improdutivo (e, perdoe-me dizer, até infantil) do que ficar apontado “olha! Mas tem gente na esquerda que também faz piadinha homofóbica!”, “olha! seu candidato também dá mancada!”, “a esquerda defende
a sua própria sardinha!”. Somos ambos homofóbicos, Noblat. Esquerda, direita, centro, diagonal, whatever. A sociedade é homofóbica. É racista também. E é isso que faz com que Lula ache legal proferir uma piada como aquela. É isso que faz com que tanta gente vote no Bolsonaro, concordando com os perdigotos que ele solta por aí. A discussão sobre a homofobia (e também sobre o racismo) não deve ser feita com base nas atitudes deste ou daquele indivíduo, mas de nós todos.
5. Você se diz um defensor da liberdade e da democracia. Eu também. Pois então dizaí pra gente, Noblat, onde é que as declarações de Bolsonaro se encaixam numa democracia que se preze. O que é mais importante na sua ideia de democracia, Noblat? O direito de falar qualquer merda ou o direito das pessoas à dignidade, ao respeito, a serem todas cidadãs equivalentes? Na sociedade que eu quero, Noblat, não, dizer qualquer barbaridade não é um direito. Não, as pessoas não têm o direito de defender que um determinado grupo seja inferior, promíscuo, sujo, excluído, execrado, torturado, linchado. Porque isso não está no campo das reles opiniões, como dizer que prefere abacaxi a banana. Declarações como essas incitam ao ódio. “Opiniões” como essa acabam gerando agressões e exclusões de verdade, como a dos meninos atacados na Av. Paulista e os tantos outros casos que acontecem diariamente mas não chegam às páginas dos jornais. Não é apenas questão do ofendido recorrer à justiça. Porque isso não repara os danos que declarações como estas causam num grupo inteiro: baixa auto-estima. Homofobia internalizada. E por aí vai. Não foi só a Preta Gil que foi agredida pelas declarações de Bolsonaro. Na sociedade que eu quero, Noblat, as pessoas não vão aceitar que barbaridades como essas sejam ditas. Porque elas não são mesmo aceitáveis numa democracia.
6. Você, Noblat, é mais velho do que eu. Você viveu a ditadura. Sabe o que é censura. Sabe o que á patrulha. Eu nasci depois que o país já tinha feito a transição democrática. Comparar as reações das pessoas às declarações de Bolsonaro a censura ou patrulha, para quem viveu de fato a censura e a patrulha, chega a ser uma imbecilidade. O Brasil não lutou por liberdade de expressão para poder defender publicamente a opressão de quem quer que seja. O Brasil lutou por liberdade de expressão justamente porque era oprimido. E porque não queria mais sê-lo. Defender Bolsonaro com o argumento da “liberdade de expressão”, na minha opinião, é cuspir em cima da árdua luta que tivemos para tê-la.


por Marjorie Rodrigues

Jornalista formada pela ECA-USP, passou por Reuters, editora Globo e Transparência Brasil e hoje bandeou-se para os lados da assessoria de imprensa. Sua grande paixão é a crítica feminista de mídia, assunto sobre o qual fala em seu blog e também foi tema do seu TCC, "Backlash à brasileira: A construção do feminino no jornalismo impresso".




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(Claudia Lins)

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